FERREIRO, Emília. Reflexões sobre alfabetização. Tradução
Horácio Gonzales (et. al.), 24. Ed. Atualizada – São Paulo: Cortez, 2001.- (Coleção
Questões da Nossa Época; v 14)
APRESENTAÇÃO
Emilia Ferreiro nasceu na Argentina em
1936. Doutorou-se na Universidade de Genebra, sob orientação do biólogo Jean
Piaget, cujo trabalho de epistemologia genética (uma teoria do conhecimento
centrada no desenvolvimento natural da criança) ela continuou, estudando um
campo que o mestre não havia explorado: a escrita. A partir de 1974, Ferreiro
desenvolveu na Universidade de Buenos Aires uma série de experimentos com
crianças, o que deu origem às conclusões apresentadas em Psicogênese da Língua Escrita, assinado em parceria com a pedagoga
espanhola Ana Teberosky e publicado em 1979. Ferreiro é hoje professora titular
do Centro de Investigação e Estudos Avançados do Instituto Politécnico
Nacional, na Cidade do México, onde mora. Além do livro Reflexões sobre alfabetização (2001), Ferreiro também publicou Psicogênese
da língua escrita (1999), O ingresso
na escrita e nas culturas do escrito: seleção de textos de pesquisa (2013), Com todas as letras (2007) e Alfabetização em processo (2001).
INTRODUÇÃO
O presente estudo trata da obra Reflexões sobre alfabetização, de Emília
Ferreiro, apresentada em quatro capítulos. A autora faz uma análise sobre a
alfabetização, trazendo uma reflexão a respeito da prática escolar, na qual se
baseia em experiências vivenciadas por ela e por outros colaboradores. Ferreiro
(2001) aborda a representação da linguagem e o processo de alfabetização,
enfatizando a importância das duas extremidades do processo de
ensino-aprendizagem (educador e educando) e alerta para um terceiro item que
deve ser levado em conta: a natureza do objeto de conhecimento que circunda
essa aprendizagem.
No primeiro
capítulo, “A representação da linguagem e o processo de alfabetização”,
Ferreiro (2001) discorre sobre a construção histórica do sistema de
representação escrita. A autora afirma que a escrita possui um caráter
bifásico: o signo e a representação:
É o caráter
bifásico do signo linguístico, a natureza complexa que ele tem em relação ao
que está em jogo. Porque, o que a escrita realmente representa? Por acaso
representa diferenças nos significados? Ou diferenças nos significados com
relação à propriedade dos referentes? Representa, por acaso diferenças entre
significantes? Ou diferenças entre os significantes com relação aos
significados? (FERREIRO, 2001, p.13).
Ao se
alfabetizar, entra também em cena a forma como se entende a relação escrita X
representação. Conforme é colocado por Ferreiro (2001), a visão “adultocêntrica”
tende a considerar a sua percepção de escrita para munir-se de um método
considerado eficaz para alfabetizar, quando na realidade não é exatamente o
método que vai determinar o sucesso do alfabetizador. Segundo Ferreiro (2001,
p. 30) “[...] os métodos... não oferecem mais do que sugestões, incitações,
quando não práticas, rituais ou conjunto de proibições. O método não pode criar
conhecimento”, especialmente quando quem o aplica não estabelece a priori o compromisso de pensar e
pesquisar como acontece o aprendizado da representação escrita para a criança.
Mais do que escolher um método, é importante considerar como as crianças aprendem
e quais as formas de manifestação desse aprendizado (desenho, garatuja,
escrita...) que podem manifestar um nível de construção lógica na criança.
Ainda no
primeiro capítulo, a autora discute a respeito da polêmica tradicional sobre a
ordem em que devem ser introduzidas as atividades de leitura e escrita. Na
América Latina, a tradição tende a utilizar uma introdução em conjunto das duas
atividades. Ferreiro (2001, p. 35) afirma que “por isso se tem imposto a
expressão lecto-escritura”. Todavia, supõe-se que a criança aprenda a ler antes
de aprender a escrever sem fazer cópia.
Ferreiro (2001, p. 41) conclui o primeiro capítulo
atestando que temos uma visão “empobrecida da criança que aprende: a reduzimos
a um par de olhos, um par de ouvidos, uma mão que pega um instrumento para
marcar e um aparelho fonador que emite sons.” Mas há um ser muito além dos
sentidos, um ser pensante e atuante sobre a realidade. Portanto, segundo
Ferreiro (2001), é preciso sempre pensar sobre as práticas de introdução à
língua escrita.
No capítulo
dois, “A compreensão do sistema de escrita: construções originais da criança e
informação específica dos adultos”, Ferreiro (2001, p. 42) afirma que a criança
está “imersa em um mundo onde há a presença dos sistemas simbólicos socialmente
elaborados, a criança procura compreender a natureza dessas marcas especiais”.
Assim, conforme a criança vai vivenciando experiências, vai “descobrindo as
propriedades dos sistemas símbolos através de um prolongado processo
construtivo” (2001, p.43)
Com base nas
pesquisas empíricas, onde foi utilizado o método clínico e de exploração
crítica - característicos dos estudos Piagetianos -, que a autora fez com crianças
derivadas de classes sociais distintas, percebeu-se que um passo importante no
processo de aprendizagem é a criança diferenciar o que é uma figura e o que não
é uma figura. Depois que a criança entende que não só as figuras representam
algo, mas também os símbolos (números e letras), ela passa a operar com a
máxima de que para escrever uma palavra são necessárias no mínimo três letras,
e que é preciso que essas letras variem, que não haja repetição das mesmas.
A ideia de
quantidade e variedade, segundo Ferreiro (2001) são construções características
das crianças, concepções internas, que não se submetem ao ensino adulto. A ordem
e a concepção de que cada palavra dita corresponde a uma escrita é uma das
etapas do aprendizado da lecto-escritura. E esse processo (alfabetização) é
lento e exige grande esforço, pois segundo Ferreiro (2001, p. 55) “A tão famosa
correspondência fonema-grafema deixa de ser simples quando se passa a analisar
a complexidade do sistema alfabético”. Já os conhecimentos específicos sobre a
linguagem (ortografia, pontuação, etc.) são aprendidos através de outros meios
(leitura, adultos, outras crianças) e não alteram a situação de “estar
alfabético” do sujeito, pois conforme Ferreiro (2001, p. 59) “algumas das
interações adulto-criança e crianças entre si, criam-se condições para a
inteligibilidade dos símbolos”.
Sobre as implicações
pedagógicas, Ferreiro (2001) afirma que os profissionais da educação (professores)
devem se atentar ao fato de que:
[...] se só nos dirigirmos às crianças que compartilham alguns de
nossos conhecimentos (ou seja, a quem já tenha percorrido praticamente sozinho
grande parte do caminho), deixaremos de lado uma grande porcentagem da população
estacionada em níveis anteriores a esta evolução, condenando-a –
involuntariamente – ao fracasso, (FERREIRO, 2001, p. 61).
A autora
evidencia sua preocupação com o analfabetismo, pois este, ainda hoje, é um
grave problema que cabe ao sistema ser mais eficiente para resolvê-lo, se
desejar reverter o fracasso escolar. Portanto, acreditar na educação e
principalmente no potencial dos alunos, se mostra uma ferramenta valiosa para o
profissional que executa suas atividades com a responsabilidade de pensar e
praticar uma pedagogia que consiga alcançar a todos os seus alunos, de forma a
promover a evolução de todos, e não apenas reforçar os que já estão em um nível
dito mais “fácil” de visualizar os avanços.
No capítulo
três, “Processos de aquisição da língua escrita no contexto escolar”, Ferreiro
(2001) afirma que o desenvolvimento da leitura e escrita inicia-se bem antes da
escolarização, entretanto, os professores demonstram enorme dificuldade em
aceitar este fato. A autora assegura que cabe ao educador não somente aceitar,
mas também não temer que seja assim, ou seja, é preciso levar em conta o
conhecimento prévio que a criança adquiriu antes de entrar na escola acerca de
sua língua, ao invés de ignorá-lo e despejar em cima dela um método previamente
estabelecido.
De acordo com a
autora:
A ideia subjacente a esse modo de raciocinar e ainda
muito difundida é a seguinte: necessitamos controlar o processo de
aprendizagem, pois, caso contrário, algo de mau vai ocorrer. A instituição
social criada para controlar o processo de aprendizagem é a escola. Logo, a
aprendizagem deve realizar-se na escola, (FERREIRO, 2001, p. 64).
Embora a escola
tente podar o aluno e moldá-lo aos seus padrões, as crianças em qualquer lugar
do mundo não levam em conta essa restrição, não esperam chegar à escola para
começarem a aprender, pois logo ao nascer já começam a construir seu
conhecimento. Ao tentarem assimilar o mundo que as cerca, trazem a tona
problemas muito difíceis e abstratos e buscam, elas mesmas, suas soluções. As
crianças estão em uma fase de construção de muitos conhecimentos e o sistema de
escrita, segundo a autora, é apenas um deles.
De acordo com
Ferreiro (2001, p. 65), “a aprendizagem da leitura-e-escrita é muito mais que
aprender a conduzir-se de modo apropriado com este tipo de objeto cultural.” É
bem mais do que isso, justamente, por abranger a construção de um novo objeto de
conhecimento que, como tal, não deve ser diretamente percebido de fora.
Ferreiro (2001) dá exemplos de crianças que
foram submetidas ao processo de ensino aprendizagem (escrita), mostrando os
avanços ocorridos gradativamente durante todo processo. Em um primeiro momento
a criança escreve tudo com o mesmo grafema repetindo-o várias vezes. Dois meses
após já se pode notar progressões, ela aprendeu a desenhar algumas letras,
alterando caracteres em uma palavra, escrevendo de modo mais convencional,
apesar de não haver correspondência entre grafemas particulares e pauta sonora.
Após mais dois meses, a progressão foi ainda maior, pois ela havia ampliado seu
repertório de letras, aprendeu que para palavras diferentes deve-se usar letras
diferentes. Quase ao final do ano já era capaz de escrever seu nome
pronunciando silabicamente para si mesma. Ferreiro (2001) concluiu então, que
esta criança estava construindo um sistema silábico de escrita, tendo assim
condições de relacionar a pauta sonora da palavra: uma letra para cada sílaba.
A segunda
criança já iniciava o Ensino Fundamental sabendo desenhar seis letras
diferentes, e usava este repertório para distinguir palavras. Após dois meses
já apresentava a escrita silábica. Com mais dois meses essa criança já se
encontrava na etapa silábica-alfabetica. A autora esclarece que esta escrita é
considerada tradicionalmente como omissão de letras, sob o ponto de vista da
escrita adulta, mas vista do sujeito em desenvolvimento, esse tipo de escrita é
considerado “acréscimo de letras”.
Ferreiro (2001)
relata uma pesquisa realizada por ela, com propósito de descrever o processo de
aprendizagem que ocorre nas crianças fracassadas enfatizando a evolução das
produções escritas feitas por elas. A pesquisa começou com 959 crianças e foi
finalizada com 886 dessas mesmas crianças que foram submetidas a entrevistas
individuais. Em cada entrevista foi proposta a criança quatro palavras dentro
de um dado campo semântico, com uma variação sistemática no número de sílabas.
Notou-se que 80% dessas crianças, no início do ano escolar, escreviam sem
estabelecer qualquer correspondência entre pauta sonora da palavra e a
representação escrita, nem correspondência qualitativa/quantitativa. Assim, a
autora seguiu sua análise sobre a pesquisa realizada utilizando uma tabela que
da ênfase aos padrões evolutivos que a criança percorre e fez observações sobre
os diferentes níveis de escrita, demonstrando quanto por cento das crianças
entrevistadas se encaixam em cada nível.
No capítulo
quatro, “O espaço da leitura e da escrita na educação pré-escolar”, Ferreiro
(2001) disserta acerca da polêmica se deve ou não ensinar a ler e escrever na
pré-escola.
A
pergunta “deve-se ou não ensinar a ler e a escrever na pré-escola?” é uma
pergunta reiterada e insistente. Tenho sustentado, e continuo sustentando, que
essa é uma pergunta mal colocada, que não pode ser respondida afirmativa ou
negativamente antes de serem discutidos os pressupostos nos quais se baseia.
(FERREIRO, 2001, p. 93)
Segundo a
autora, esse é um problema mal colocado, por ser falso o pressuposto no qual se
baseiam ambas as posições antagônicas. O problema foi apresentado pressupondo
que os adultos é quem decidem quando essa aprendizagem deverá ser iniciada e
quando decidido que esse processo de aprendizagem não iniciará antes do Ensino
Fundamental, as salas sofrem um processo de limpeza até que desapareça todo
sistema de escrita. Sendo assim, a escrita que está presente em meio social
desaparece da sala de aula. Por outro lado, quando se decide iniciar esta
aprendizagem na Educação Infantil, as salas assemelham-se às salas do 1º ano.
A criança
inicia sua aprendizagem de matemática, por exemplo, antes mesmo do contato
escolar, quando decidem ordenar vários objetos através de diversas
participações ao meio social. Portanto, não poderia ser diferente com o sistema
de escrita, uma vez que este faz parte da realidade urbana, mantendo contato
desde cedo com informações das mais variadas procedências como: cartazes de
rua, embalagens, livros, revistas, etc. Desta maneira, a criança não entra na
escola sem nenhum conhecimento sobre o sistema de leitura e escrita. É necessária
uma imaginação pedagógica para dar as crianças oportunidades ricas e variadas
de interagir com a linguagem escrita.
Ferreiro (2001)
finaliza a obra afirmando que é preciso compreender que a aprendizagem da
linguagem escrita é muito mais que a aprendizagem de um código de transcrição:
é a construção de um sistema de representação.
CONCLUSÃO
A partir da
leitura do livro de Ferreiro (2001) e dos outros trabalhos apresentados em
seminários e discutidos pela professora Sara e por nossos colegas em sala de
aula, pudemos assimilar muitos conceitos que norteiam a alfabetização, que a
possibilitam. A obra de Ferreiro (2001) tem uma linguagem acessível para
compreensão, sem deixar seu caráter informativo e, principalmente, coerente. A
ideia que a autora defende (resumidamente, propiciar condições de aprendizado
mais do que se preocupar com o método a ser utilizado para ensinar algo) nos é
admirável, uma vez que esta é a luta de muitos que ainda acreditam na educação.
Portanto, é de grande contribuição a leitura e discussão deste texto, não só para
nós, estudantes do curso de Pedagogia, mas para todos os outros estudantes e
profissionais que atuam na área da educação.
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